domingo, 24 de fevereiro de 2013

Roteiro de uma vida




Enquanto jogava baldes de água no quintal para refrescar aquela manhã ensolarada, sentia o cheiro do perfume que os lençóis estendidos no varal exalavam com o vento.
O céu todo azul, a brisa suave, o cheiro do bolo assando para a tarde e a expectativa dos novos acontecimentos, faziam daquele dia uma promessa, de que tudo começaria a melhorar.
Acho que poderei viver com minhas lembranças. Elas povoam meus dias desde pequena, me fazem companhia e me trazem felicidade.
Até meus trinta e oito anos, pensei que minha vida teria sempre a mesma adorável rotina. Meus dias com meus filhos pequenos eram imensamente felizes. Existia uma paz, harmonia, segurança indescritível e meus dias eram totalmente ensolarados.Os problemas que via nas outras vidas,eram tão distantes dos meus.Vivia dentro de um livro azul,onde o amor reinava absoluto.
Todos os contos de fada, têm seu fragmento inseguro, de suspense,de dúvidas e o meu não fugia à regra,embora eu não soubesse e nem acreditasse.
Foi quando um vendaval feito um tsunami invadiu minhas páginas, arrancando folhas, molhando e destruindo paginas e mais páginas daquela maravilhosa fábula .
Vi-me só. Uma escolha minha, mas fora forçada a assumir essa decisão.
Um livro de capa preta, folhas amareladas e grotescas, letras rubricadas de forma ilegível, com tinta escura e permanente, começou a fazer parte da minha biblioteca.
Dias de paixão, amor? Brigas e desencontros.
Experimentei muitas partes das historietas que via a distancia e senti que isso era vida real.
Num espaço pequeno do tempo, conheci meu Xangrila.Arrastei minha vida para lá e um novo conto começou a ser narrado.
Conheci uma felicidade que fazia parte das minhas aspirações por décadas. Um desejo que pensava ser impossível. Pisava no paraíso e não queria voltar.
De uma tela iluminada,onde o abstrato constrói fantasias ,deu-se a materialização de uma utopia e meu monólogo teve um final .
Ele era o príncipe do meu romance. Já o amava em meus sonhos. Vivia com ele nos meus devaneios.
Um conde, duque, barão, algo nobre que me tirou da prosaica vida e me inseriu na escrita de um livro armorial.Entre cartas trocadas em línguas diferentes, os sentimentos eram semelhantes e os desejos de uma vida em comum, brotaram em vasos numa estufa, cuidados pelo mais primoroso jardineiro.
Espera, ansiedade, sonhos habitaram um pequeno tempo de espera, finalizado com uma partida.
Um novo mundo acendeu, com toda luz e cor permitida nessa vida humana.
Uma cultura diferente faz você crescer em aprendizado. Assimilei tantas coisas boas e adicionei ao meu dicionário.
Comidas, costumes, festas, atitudes, compromissos, pareciam notas musicais sendo compostas por um virtuoso maestro. Não desafinavam e continham uma harmonia celestial.
Dancei a melodia, compus alguns trechos com minhas lendas, folclores e tradições.
A história precisava de um final e o escritor não queria que ela fosse apenas uma transcrição de um conto comum encontrado em milhares de livros, onde os finais felizes são previsíveis no começo da narração.
Então, houve uma revolta dos anjos, uma conspiração divina e as bruxas se soltaram dos livros infantis e com suas vassouras voadoras, pousaram com todo seu veneno contido em maçãs , roca e caldeirões, nas minhas páginas alvas e cândidas.
O espelho mágico se quebrou.
Senti uma espada cortar meu coração ao ter que recolher cada pedacinho de vidro jogado no chão e perceber que não mais tornaria a ver através dele a imagem que outrora figurava em seu reflexo.
Horas, de uma volta dolorosa, com tantas lembranças dançando na minha cabeça.
Um retorno ao meu velho livro.
Começar a escrever um novo capítulo, sepultar o velho, o passado, o caído, requer um tempo de clausura que não tive.
Sou uma escritora primária, preciso de enredos, ideias, emoções para rabiscar grandes crônicas.
Encontrei um dilúvio de emoções num grupo de estudantes. Infiltrei-me na categoria e principiei uma temporada única, que traria à minha vida um punhado de felicidade.
Que surpresa!
Quem diria que poderia ser assim bem-aventurada?
Colegas de classe, temas, trabalhos, pesquisas, teatros, livros e mais livros, provas, viagens e principalmente amigos.
A felicidade não vem de graça. Acho que precisava de toda ela para suportar o que estava por acontecer.
Com todo meu tempo ocupado em ser feliz, entre colegas de pedagogia, jogos e competições de vôlei que ocupavam minhas manhãs, cercada de todos os episódios que amava, meu filho partiu.
Numa manhã de sábado, ele não voltou.
Ao chegar em casa depois de uma atividade,encontrei um grupo de jovens que aguardavam por mim.
Caras vermelhas de choro, lágrimas escorrendo pelos olhos, soluços presos na garganta, o silêncio dos mortos.
Entendi, sem que precisassem proferir uma única palavra, que meu filho não voltaria mais.
Um lápis cinza borrou meu colorido desenho de vida.
Meu coração fora apunhalado mais uma vez, agora de maneira profunda, densa e definitiva.
Nunca reguei os vasos que continham ervas daninha, mas os de flores silvestres, meus preferidos, eram fertilizados com esmero, deste modo, definitiva, não pertencia ao meu código de procedimento de vida.
Desvesti a armadura de ferro que me impuseram, vesti um véu de ceda colorido e comecei a delinear uma saída.
Mergulhei mais profundamente nos estudos, me apoderei de novos costumes, me aproximei dos amigos, estreitei os laços familiares e sorri para o mundo.
Como é bom observar a vida daqui de cima... Como se eu flutuasse numa bolha, e com meu sopro pudesse levá-la pra onde eu quisesse.Foi para lá que me posicionei.Pertinho de alguém que amo muito: meu criador.
O tempo passou cheio de paz.
Conheci pessoas que poderiam me tirar do isolamento emocional romanesco. Entre Paulo, José e Roberto, me senti uma jovem burguesa, onde os pretendentes lutam pelo seu coração. Um novo livro de guerra com resíduos mediévicos?
Não escolhi, fui escolhida por acaso, por necessidade de fechar uma brecha no coração e vida de um cidadão. Deixei-me levar por compaixão, sentimento proibido nas paixões.
Comecei a perder as características que tanto amava. Minha independência foi sendo coberta por palavras e criticas que inibiam minha espontaneidade. Costumes bloquearam minha liberdade, minhas idas e vindas, minhas músicas, meus sonhos. Cobranças, vidas e ideais tão díspares, tornaram nossas vidas um paralelo equidistante.
Um livro de geometria a essa altura?Não!
Um desacordo, um infortúnio ou talvez uma lamparina acesa na escuridão, me libertou das algemas que sentia arranhar meus pulsos já sangrando.Fiquei só.
Voltei a ser eu mesma. A escrever meus contos diários com as palavras que gosto, com o entusiasmo esquecido, mas agora autorizado, que sobe e desce, que chora e ri,que se esconde e aparece,que se ama,se protege e que esta imensamente feliz por desfrutar dessa liberdade de escolhas.
É, acho que posso sim viver com todas essas memórias. Elas preenchem várias etapas de necessidades que poderei ter. Será minha companheira em tempos solitários. Lembrará-me que tive e tenho uma vida plena. Não fui poupada, mas também não fui mártir. Não fui covarde, nem medíocre, tracei meus caminhos baseados em paz e por isso muitas vezes calei.
Ainda estou na nave e vou viajar pela vida. O que escreverei?
Quem sabe uma fabulosa experiência cientifica...



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