Uma chave na minha bolsa...



Estava com pressa, queria fazer algumas anotações importantes para o meu dia e não conseguia encontrar uma caneta em lugar nenhum.

 Supõe-se que dentro de uma bolsa feminina, esse artigo importantíssimo tenha um lugar certo. Mas em se tratando da “minha bolsa”, não se espera nada do que é comum. Consegui achar algo que tinha um formato parecido com o que procurava, e imediatamente retirei o objeto na ansiedade de usá-lo.Era uma chave de fenda que esqueci depois de um pequeno trabalho de conserto em casa.Nada feminino,aliás,essa palavra não faz parte do meu glossário desde os mais remotos tempos de criança.

Costumava andar descalça e sujar os pés. Ah! Como adorava pisar em poças d’água e deixar minhas pegadas na calçada. Shorts sujo, cabelos espetados e grudados (muita eletricidade), joelhos ralados (sempre) e nariz pintado com a mesma cor das minhas mãos. Gostava de correr, bater nos meninos (vai entender), pular sela, andar de carrinho de rolimã.

Era uma menina incomum e estava longe dos sonhos que meus pais tinham para mim.

Mama me pegava pelas orelhas e me colocava na frente do espelho grande do guarda-roupa, para que eu pudesse ver e perceber quão feia e suja estava e usava a imagem da prima como referência.

Lembro da minha carinha ao me confrontar com ela. Loira, sempre de tranças, branquinha e cheia de laços pelo corpo todo. Laços no cabelo, laços no vestido, laços amarrando o vestido, laços nas meias e laços na calçinha. Não sei como não se dava um nó. E entendendo a comparação, com ar de inocência minha querida prima ainda ajudava:_ “Eu não brinco com meninos e nem fico descalça, é muito feio”. O resultado dessa pequena explanação era a proibição de sair à rua.

Felizmente, ela se esquecia logo do acontecido e no dia seguinte lá estava eu descalça no meio da rua, empinando pipas com os meninos, atirando peão na roda e chutando bola. (nossa lendo tudo isso percebo a preocupação da mama e acho que ela tinha razão rsrsr) Mas quando ao findar o dia,descia para a sala com banho tomado(demorado até me livrar de todos os cascões),vestida com meu pijama florido e com os cabelinhos penteados, mama me pegava nos braços e com um carinho enorme me fazia mil agrados.

De volta ao achado na minha bolsa, percebi que ainda guardo comigo esse senso de vida. Faço o que gosto, o que for preciso, sem me preocupar ou sem me enquadrar no ser feminino que foi programado para quem nasce mulher. Ainda me pego descalça andando pelas ruas da minha cidade.

Sou eu, a menininha que prometia uma vida cheia de peripécias e independência, que já era feminista sem saber da classe, que teve uma meninice cheia de sonhos e alegrias e que se preparou bem de mais para a vida que leva hoje. O registro total da minha infância foi projetado no meu presente. Sou o que sempre fui e serei o que sou hoje até findar meus dias.Sou um holograma do meu passado.